O cenário é uma ladeira abaixo. Há quatro décadas, 90% da matriz elétrica do Brasil vinha de hidrelétricas —Itaipu, por exemplo, foi construída nessa época. Desde então, essas usinas viram sua representatividade cair, ainda que continuem sendo a principal fonte brasileira.
A energia hidráulica é hoje responsável por 53% da capacidade instalada do país; em sete anos, a fatia terá caído para 42%, segundo estimativas oficiais.
A razão principal do declínio está na migração de investimentos para outras fontes de energia, como eólica e solar, cada vez mais baratas. Com isso, há momentos em que as geradoras hidrelétricas precisam até desperdiçar água, que verte sem produzir energia.
O ano passado registrou recordes desse tipo de processo. Só em fevereiro, as hidrelétricas brasileiras deixaram de produzir 16 gigawatts, cerca de 21% da demanda total daquele mês em todo o país. O valor não considera a energia que foi exportada para Argentina e Uruguai.
Em 1985, a matriz elétrica brasileira era composta basicamente por quatro fontes: água, carvão, petróleo e nuclear; ou seja, só uma renovável —a hidráulica—, ainda que fosse de longe a de maior expressão.
Hoje, são ao menos dez, sendo que seis são renováveis. Entre elas, as queridinhas dos atuais investidores: eólica e solar, que representam 11,5% e 11,8% de toda a capacidade no Brasil. Essas fatias, segundo a EPE (Empresa de Pesquisa Energética), devem ser de 11% e 18% em 2031. A estimativa da capacidade de geração solar considera que toda a energia renovável produzida na geração distribuída em 2031 seja via painéis solares.
A mudança na fatia de cada fonte de eletricidade tem lógica financeira: até o início da década passada, as hidrelétricas eram campeãs em investimentos em geração centralizada, segundo a EPE. Mas o declínio começou em 2013, e em 2017, elas perderam lugar para as eólicas. Em 2020, último ano da análise, as hidrelétricas estavam atrás das eólicas, solares, termelétricas e biomassa.
“Na cabeça das pessoas, parece que as energias renováveis são só as eólicas e as fotovoltaicas. Como as hidrelétricas são seculares, as pessoas se habituaram com esse recurso no sistema como se ele não merecesse destaque na transição energética”, diz Marisete Dadald Pereira, presidente da Abrage (Associação Brasileira das Empresas Geradoras de Energia Elétrica).
Em termos de emissões, a mudança na matriz brasileira não tem muitos efeitos. O IPCC (órgão de ciência climática da ONU) calcula que a energia solar emite, em média, 48 gramas de CO2 equivalente por quilowatt-hora (kwh), enquanto a hidráulica emite 24 gramas. É metade, mas em comparação com os grandes emissores é quase nada; o carvão, por exemplo, emite 820 gramas de CO2 equivalente por kwh.
Mas a mudança, segundo especialistas, ameaça a flexibilização do sistema nacional de energia elétrica. Isso porque o Brasil ainda não consegue, em larga escala, armazenar as energias eólica e solar produzidas no país. Com isso, em momentos de menor demanda energética, são as hidrelétricas as responsáveis por diminuir a produção de energia, devido à maior facilidade técnica e porque as energias eólica e solar são mais baratas —nesses casos, as hidrelétricas escoam a água que seria utilizada para a geração de energia, num processo chamado vertimento.
Nessa lógica, quanto mais o sistema ficar dependente de energia solar e eólica, mais as hidrelétricas serão as escolhidas para reduzir a oferta de eletricidade quando a demanda cair –isso se não forem criadas formas de armazenamento de energia no país, como baterias.
“Para gerar energia com essa água, seria necessário que o sistema dispusesse de mais flexibilidade; ou seja, ter mais ativos flexíveis”, diz Tiago de Barros Correia, consultor de energia da RegE Consultoria e ex-diretor da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica). Ele defende a criação de baterias e a extensão das linhas de transmissão.
Alguns países, como a China, têm investido em hidrelétricas reversíveis, onde a água não utilizada para a geração de energia fica retida em um reservatório inferior e, durante o período de baixa demanda de energia, volta ao reservatório superior por meio de uma turbina. Esse tipo de hidrelétrica é tido como importante processo de armazenamento de energia. O país asiático tem hoje 50 GW de potência nesse tipo de usina e está construindo outros 88 GW, segundo o site Global Energy Monitor.
Questionado, o Ministério de Minas Energia disse que “esse é um recurso importante que contribui para aumentar a flexibilidade operativa e de atendimento à necessidade de potência do mercado”. A pasta, porém, não citou planos de construção dessas usinas.
Um relatório da AIE (Agência Internacional de Energia) aponta que o desenvolvimento da energia hidrelétrica no Brasil diminuiu devido à disponibilidade limitada de locais economicamente viáveis, à necessidade de diversificação e às preocupações ambientais.
“A geração hidrelétrica, do ponto de vista econômico, é muito atrativa, mas depende do potencial, que é uma queda-d’água preexistente”, afirma Correia, da RegE. “O que aconteceu foi que a gente esgotou os potenciais. Uma ou outra hidrelétrica ainda poderia ser construída, mas na fronteira do planalto com a bacia do rio Amazonas, onde não é barato construir, por não ter linha de transmissão e por a obra ser mais complicada”, diz.
As complicações nas obras estão atreladas a questões ambientais, já que vários desses locais estão em áreas de preservação e terras indígenas, além de haver problemas de logística para transporte de equipamentos, materiais e trabalhadores. A construção de Belo Monte, no Pará, por exemplo, último projeto de grande porte no país, foi cercada de discussões ambientais —e serviu como pivô da saída de Marina Silva do governo Lula, em 2008.
O Plano Decenal de Expansão de Energia 2031, feito pela EPE, analisou 36 usinas hidrelétricas com registro para estudos de viabilidade na Aneel. Dessas, 20 estão em áreas protegidas ou com os estudos parados. Das outras 16, 8 poderiam começar a operar já nos próximos dez anos. Mas juntas elas totalizam potência de 2 GW —Itaipu tem 14 GW.
Das oito, as que poderiam gerar mais energia estão em Rondônia e Roraima, na floresta amazônica.
Energia limpa
Por outro lado, o setor aposta na modernização das atuais hidrelétricas. Um estudo da EPE apontou que as usinas hidrelétricas brasileiras ainda têm capacidade de aumentar em 18,2 GW sua potência, se modernizadas e ampliadas. As que podem alcançar maior geração estão no Paraná, em Pernambuco, em Goiás, em Minas Gerais, em Alagoas e em Sergipe (algumas nas divisas dos estados).
“Você não precisa ir à China ou à Europa buscar equipamento, você tem eles aqui no Brasil. As indústrias estão prontas para entregar isso”, diz Pereira. É incerto, porém, o custo dessas operações. A EPE, em 2019, estimou que o valor variaria de R$ 122 por kW a R$ 634 por kW e, em alguns casos, o retorno financeiro poderia ser menor que as despesas.
A estagnação das hidrelétricas é uma realidade global, com exceção da China, dona das maiores usinas e líder de investimentos neste setor em países emergentes. Segundo a AIE, o país representará 40% do crescimento da capacidade global desse tipo de energia até 2030.
Mas o cenário interno não é dos melhores. E o setor sabe disso: “A gente precisa colocar as hidrelétricas como carro-chefe da transição energética, porque foram elas que possibilitaram a inserção maciça dessas fontes intermitentes, que são as eólicas e as fotovoltaicas. Se não fossem as hidrelétricas, talvez a gente não tivesse o êxito que a gente tem hoje de ter a participação dessas fontes”, diz Pereira.
Fonte: UOL