Um ano após a publicação do primeiro decreto que flexibilizou a posse de armas de fogo no Brasil, os dados oficiais da Polícia Federal (PF) sobre novos registros de posse de armas concedidas assustam pelo crescimento acelerado. Somente de janeiro a dezembro de 2019, foram registradas 90.150 novas armas no país, quase 40 mil a mais do que o registrado em 2018, quando foram concedidas 51.027 novas posses de armas em diferentes categorias.
Seguindo o cenário observado no país, o Estado do Pará também apresentou aumento de novas armas registradas em 2019. Ainda de acordo com os dados oficiais da Polícia Federal, repassados ao DIÁRIO no início deste mês, em 2019 o total de registros de novas armas no Pará chegou a 3.430, maior número observado pelo menos desde 2009, último ano considerado pela planilha da PF.
Quando se analisa os tipos de concessão registrados, o que se observa, ainda, é que a categoria ‘pessoa física’ foi a que acumulou o maior volume de registros de novas armas no Pará, acima até mesmo das categorias ‘segurança pública’ e ‘segurança privada’. Apenas em 2019, foram concedidos 2.059 registros de novas armas para ‘pessoa física’ no Estado, enquanto as concessões para ‘segurança pública’ ficaram em 207 e para ‘segurança privada’ em 233.
Na contramão do maior número de posses de armas de fogo concedidas em todo o país, a legislação que regulamenta o acesso a este tipo de material se tornou cada vez mais confusa desde a primeira flexibilização, assinada pelo presidente Jair Bolsonaro ainda em 15 de janeiro de 2019. De acordo com o Balanço Preliminar das Principais Mudanças na Política de Controle de Armas e Munições no Brasil em 2019, realizado pelo Instituto Sou da Paz e pelo Instituto Igarapé, ‘a regra para a compra de armas por civis foi alterada de forma substancial ao menos 3 vezes só em 2019’.
Para que o documento fosse elaborado, incluindo uma tabela comparativa que detalha como eram as regras até dezembro de 2018 e como estão as adotadas em janeiro de 2020, a coordenadora de projetos do Sou da Paz, Natália Pollachi destaca que foi necessário ler uma lei extensa, mais quatro decretos que encontram-se em vigor atualmente e, ainda, outra boa quantidade de portarias do Exército.
DECRETOS
A essa multiplicidade de decretos e ainda a existência de normas divergentes em validade, o documento chama de ‘caos normativo’. “Algumas questões importantes nos levaram a fazer esse levantamento e uma delas, que foi o motivo pelo qual tivemos que fazer a tabela, é que houve um caos normativo com essas mudanças nas regras de aquisição de armas”, reforça. “Essas regras foram feitas de forma apressada e descuidada. Então, vários decretos foram publicados, substituídos e por si só isso já gerou uma grande desinformação”.
Para a ONG que atua há 20 anos pela redução da violência no Brasil, essa situação de diversas normas vigentes e a sequência de revogações e novas publicações gera consequências graves para a discussão acerca dos efeitos da maior flexibilização do uso de armas no país. “A população, no geral, não consegue mais participar do debate. Se você perguntar na rua, a maioria das pessoas não tem a menor ideia do que está valendo”, alerta.
“As pessoas pensam que os decretos estão todos revogados, quando existem quatro decretos diferentes em vigor e mais uma série de novas portarias, então, existe uma grande desinformação que impede que as pessoas participem do debate de forma democrática”, afirma.
Outra consequência apontada por Natália Pollachi é uma situação de insegurança jurídica até mesmo para operadores do direito e da segurança pública. “Há dez anos um policial sabia de cabeça o que era uma arma permitida, mas isso foi alterado tantas vezes ao longo do ano que, hoje, se prende uma pessoa com uma arma na rua já não sabe nem em que regra enquadrar”.
NÚMEROS
NOVAS ARMAS (POSSE) BRASIL
Registros de novas armas nos últimos anos
(Considerando a somatória das categorias pessoa física, segurança pública, segurança privada, órgão público, loja de arma, outros tipos)
2019 – 90.150 NOVAS ARMAS REGISTRADAS
2018 – 51.027
2017 – 45.485
2016 – 44.912
2015 – 49.885
2014 – 39.943
2013 – 34.454
2012 – 37.114
2011 – 26.486
2010 – 22.534
2009 – 18.967
PARÁ
Registros de novas armas nos últimos anos
(Considerando a somatória das categorias pessoa física, segurança pública, segurança privada, órgão público, loja de arma, outros tipos)
2019 – 3.430 NOVAS ARMAS REGISTRADAS
2018 – 2.142
2017 – 1.031
2016 – 911
2015 – 1.284
2014 – 765
2013 – 725
2012 – 731
2011 – 825
2010 – 195
2009 – 171
Registros de novas armas na categoria ‘pessoa física’, no Pará, nos últimos anos
2019 – 2.059 NOVAS ARMAS REGISTRADAS
2018 – 1.345
2017 – 738
2016 – 748
2015 – 929
2014 – 423
2013 – 176
2012 – 186
2011 – 251
2010 – 91
2009 – 60
PORTES DE ARMAS
BRASIL
Registro de portes de armas nos últimos anos
(Considerando a somatória das categorias defesa pessoal, caçador de subsistência, segurança de dignatário e funcional)
2019 – 9.236 PORTES EXPEDIDOS
2018 – 8.680
2017 – 5.790
2016 – 6.620
2015 – 3.827
2014 – 5.128
2013 – 3.135
2012 – 4.473
2011 – 5.020
2010 – 5.496
2009 – 8.338
PARÁ
Registro de portes de armas nos últimos anos
(Considerando a somatória das categorias defesa pessoal, caçador de subsistência, segurança de dignatário e funcional)
2019 – 404 PORTES EXPEDIDOS
2018 – 439
2017 – 341
2016 – 131
2015 – 323
2014 – 394
2013 – 19
2012 – 374
2011 – 22
2010 – 7
2009 – 14
Registro de portes de arma para defesa pessoal, no Pará, nos últimos anos
2019 – 117 PORTES EXPEDIDOS
2018 – 222
2017 – 102
2016 – 97
2015 – 24
2014 – 11
2013 – 0
2012 – 11
2011 – 22
2010 – 7
2009 – 16
Fonte: Polícia Federal.
Saiba Mais:
Posse – Com a devida autorização, a pessoa pode manter a arma em casa ou em seu local de trabalho, desde que seja ela a titular ou a responsável legal pelo estabelecimento ou empresa. Não é permitido circular com a arma fora de casa.
Porte – Quando o proprietário da arma é autorizado a transportá-la.
Flexibilização no acesso a armas
De qualquer modo, o possível impacto que mais preocupa é o que pode interferir diretamente na segurança pública da população. O que o balanço preliminar identifica é que, com os quatro decretos que estão em vigência atualmente, houve uma flexibilização importante do acesso a armas.
Segundo o documento, até 2018 os atiradores poderiam ter acesso a quantidades diferentes de armas de acordo com o seu grau de competição e experiência, sendo que o limite máximo era de 16 armas, 60 mil munições e 12 kg de pólvora. Atualmente, porém, o atirador pode adquirir, independentemente do seu nível de competição, até 60 armas, até 180 mil munições por ano e até 20 kg de pólvora.
ALTERAÇÃO
A ampliação da quantidade de acesso também sofreu alteração no caso dos atiradores e mais recentemente, no último dia 27 de janeiro, a portaria interministerial 412 ampliou também a quantidade de munições que podem ser adquiridas por policiais e também por civis já autorizados a portar armas.
“Com isso há a ampliação da quantidade de munição também para civis que têm arma somente para uso de defesa pessoal. Antes um civil poderia ter 50 munições por arma e aí, de repente, o Governo autoriza que sejam 200 munições por arma sem nenhuma justificativa. Considerando que é uma arma de defesa pessoal, para um uso extremamente restrito a um caso de exceção, entende-se que uma pessoa não dá 200 tiros em legítima defesa”, contextualiza Natália Pollachi.
“Então, essa profusão de quantidade nos preocupa bastante porque a arma do mercado legal, por vezes, acaba alimentando o mercado ilegal, já que elas são muito facilmente roubadas, furtadas, desviadas… ”
Poder de fogo foi ampliado com maior quantidade de munições para civis
Mais recentes, as alterações realizadas pela portaria 412, de 27 de janeiro de 2020, também chamam à reflexão quanto as consequências do uso de uma arma, já que o aumento da quantidade de munições que podem ser adquiridas por policiais e também por civis ampliam o poder de fogo das armas já autorizadas no país.
Ainda de acordo com dados oficiais da Polícia Federal (PF), 2.945 portes de armas de fogo para uso de defesa pessoal foram registrados no Brasil apenas no ano de 2019, quando iniciaram as medidas de flexibilização. Considerando que a portaria interministerial do dia 27 de janeiro ampliou de 50 para 200 a quantidade de munições que podem ser adquiridas, por ano, por civis com porte para defesa pessoal, os novos limites possibilitam que 589 mil munições sejam adquiridas anualmente considerando apenas as armas registradas em 2019 para este fim específico. Pela regra anterior, essa quantidade não passaria de 147 mil munições ao ano.
PORTE
Especificamente no Estado do Pará, os dados oficiais da PF demonstram que, entre janeiro de 2009 e dezembro de 2019, o registro total de porte de armas para uso de defesa pessoal chegava a 629. Com a mais recente portaria publicada pelo Governo Federal, esse número possibilitaria a compra de 125,8 mil munições por ano apenas para uso de defesa pessoal. Se a regra anterior continuasse em validade, o número de munições passíveis de serem compradas pelos proprietários destas mesmas armas não passaria de 31,4 mil.
Por representar a simples possibilidade de uma quantidade maior de tiros poder ser disparada, os números já assustam. De qualquer modo, a coordenadora de projetos do Sou da Paz, Natália Pollachi, destaca que os impactos de toda essa política de flexibilização de acesso a armas e munições no Brasil ainda demorarão um pouco para serem conhecidos de forma mais efetiva.
“A gente vai demorar um tempo para perceber o impacto dessas mudanças, até porque para juntar toda a documentação, iniciar o processo e comprar a arma leva um tempo. Então não dá para falar em nenhum impacto imediato”, concluiu.
Fonte: DOL