O Ministério Público Federal (MPF) entrou com recurso na Justiça para pedir que todas as famílias do território quilombola do Jambuaçu, em Moju, no nordeste do Pará, sejam recompensadas pelos impactos provocados pela instalação e manutenção de um mineroduto e de linha de transmissão de energia da mineradora Vale.
Ajuizado na última sexta-feira (9), o recurso pede ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), em Brasília (DF), a revisão de sentença publicada no site da Justiça Federal no Pará em janeiro deste ano.
A sentença havia considerado que apenas 58 famílias têm direito a serem recompensadas pelos impactos da instalação e manutenção da linha de transmissão de energia e do mineroduto, que transporta bauxita da mina Miltônia 3, em Paragominas, no sudeste paraense, até a refinaria da Hydro Alunorte em Barcarena, município vizinho a Belém.
Para o MPF, todas as 788 famílias quilombolas têm direito à compensação, ou seja, a serem incluídas em projeto de geração de renda previsto desde o licenciamento das obras, em 2008, e a receberem pagamento mensal enquanto o projeto de geração de renda não estiver em vigor.
Esse direito, segundo o MPF, é garantido pela legislação, pela história e pelos laços de parentesco e convivência que unem as famílias e fazem delas um corpo social único e coletivo, com direitos que não podem ser interpretados como os das normas do direito privado.
Além disso, os impactos ambientais foram sentidos em todo o território (remoção da cobertura vegetal, impactos no uso da terra, erosão, aumento de material em suspensão e assoreamento dos cursos d’água, poluição e contaminação dos recursos hídricos e impactos na atividade pesqueira).
Contexto desconsiderado – Com base em estudos científicos, o procurador da República Felipe de Moura Palha destaca no recurso que a organização sociopolítica dos grupos que formam o território quilombola do Jambuaçu é “fruto de um longo processo que carrega forte influência de suas vivências em rios e matas e formas específicas no trato de lidar, conceber e se relacionar com os recursos naturais”.
Esse processo também é resultado da relação desses grupos com outros atores sociais que deram ao território do Jambuaçu uma outra dinâmica, marcada, dentre outras coisas, pelos desdobramentos de conflitos sociais que influenciaram, de forma decisiva, na construção de uma nova identidade às populações negras rurais da região.
Por isso, após relatar alguns dos principais casos de conflitos gerados pela invasão do território quilombola por empresas privadas, e registrar uma série de compromissos não cumpridos pela Vale durante o licenciamento do mineroduto e linhão, o procurador da República alerta que o laudo citado na sentença foi produzido por engenheiro florestal sem a participação de um antropólogo, profissional qualificado para analisar os modos de fazer, criar e se organizar das comunidades tradicionais.
Para o MPF, é preciso que fique claro que o impacto do empreendimento é difuso, atingindo todas as famílias, tanto aquelas cujas terras se situam sob o linhão ou sobre o mineroduto, quanto as demais, tendo em vista que um empreendimento dessa magnitude altera todo e qualquer processo de produção, especialmente a frágil economia familiar rural, sobretudo pelo assoreamento de cursos d’água.
“Nessa perspectiva, o que se observa é uma verdadeira violência cometida pelo empreendedor, ao tentar acelerar a implementação do empreendimento, taxando as legítimas reivindicações das famílias atingidas pelo impacto das obras como sendo formas de exigências descabidas ou extorsivas”, critica Felipe de Moura Palha.
O MPF enfatiza que a empresa assumiu essa atitude, de entrar em conflito direto contra os quilombolas – incluindo o ajuizamento de ações contra eles –, só depois que conseguiu a licença para começar a operar o mineroduto. “Isto sim é tentar beneficiar-se da própria torpeza”, comenta o procurador da República.
Direitos violados – A Vale, segundo o MPF, argumenta que as obrigações impostas pelo licenciamento ambiental – as chamadas condicionantes – foram exageradas, e à Justiça diz que foi feito acordo judicial com os quilombolas.
Para o MPF, ambas as alegações são falsas. Primeiro porque não cabe à empresa dizer quais devem ser as condicionantes, e sim ao órgão licenciador, e segundo porque o acordo judicial omitiu as condicionantes e nesse acordo não há nenhuma cláusula que desobrigue a Vale de implantar os projetos produtivos.
Ao assinar um acordo com cada quilombola a empresa desrespeitou também a condição jurídica do território quilombola. De acordo com a convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), tendo em vista que as áreas ocupadas pela Vale no território quilombola do Jambuaçu limitaram o direito de uso da terra pelas comunidades, as indenizações não poderiam ter sido estabelecidas individualmente, e sim por meio de consulta às comunidades coletivamente consideradas.
“Cabe asseverar que, em se tratando de área sujeita à titulação como quilombola, deve ser rompido o paradigma de propriedade individual, lançando-se mão da compreensão da área como de propriedade da União para o uso da coletividade”, salienta o procurador da República.
“O empreendimento que atinge um território tradicional, atinge sempre todo o território em seus modos de vida e suas tradições, pois o processo de territorialização desses grupos é sempre marcado pela consolidação de uma identidade coletiva e por um significado de ‘natureza’ próprio, portanto, diferente de seus antagônicos”, completa o membro do MPF.
Confirmação quilombola – Em visita ao território quilombola do Jambuaçu realizada em fevereiro deste ano o MPF entrevistou famílias de diversas comunidades, e pôde comprovar o que as pesquisas e a legislação dizem: uma área quilombola não deve ser tratada como um loteamento que reúne propriedades particulares.
Esse tratamento tem resultado em uma série de conflitos internos na comunidade, e vários entrevistados indicam que, sem uma perspectiva de geração de renda, os mais jovens vão acabar deixando o local.
“É como se o Estado tivesse rachando uma família. Somos uma família sanguínea mesmo. Mas a decisão que privilegiou só alguns colocou pais contra filhos, irmãos contra irmãos”, lamenta Manoel de Almeida, um dos agricultores familiares quilombolas entrevistados pelo MPF.