Uma aldeia indígena do povo Tembé foi novamente atacada por pistoleiros em menos de uma semana. Os invasores deixaram três quilombolas feridos na quinta-feira (4 de janeiro), incluindo uma adolescente.
A jovem foi encaminhada para tratamento em Belém, com riscos de perder o braço. O estado de saúde das outras duas vítimas não foi informado. As vítimas estavam em um veículo que foi alvejado próximo à aldeia com cerca de 20 tiros. Um vídeo mostra o momento dos disparos.
O episódio de conflito ocorre um dia após a prisão de Miriam Tembé, liderança indígena que havia denunciado invasão de pistoleiros, ligados a outro grupo indígena, que chegaram ao local atirando também no último dia 30 de dezembro.
Miriam foi presa em Tomé-Açu, no nordeste do Pará para responder por suspeitas de coação no curso do processo e fraude processual, segundo a Polícia Civil local, que cumpriu a ordem de prisão na tarde de quarta-feira (3/01). A prisão ocorreu dias após ela ter feito as denúncias de invasão.
O mandado de prisão da cacica foi assinado pelo juiz José Ronaldo Pereira Sales, determinando a prisão dela e outros dois familiares, devido a um caso de homicídio ocorrido em outubro de 2023. O filho de Miriam é suspeito de matar o próprio tio, após um desentendimento no distrito de Quatro Bocas.
Miriam é apontada no caso por supostamente atuar para dificultar a apuração da polícia, ao tentar orientar testemunhas a não darem detalhes à polícia, segundo denúncias. Os dois familiares não foram presos. O caso corre sob sigilo.
A defesa de Miriam afirma que ela não tem relação com o crime. “O Ministério Publico inclusive foi contra a prisão dela. O juízo agiu com cautela ao determinar a prisão porque existe um clima de insegurança e tensão na região, mas acreditamos que não deve mantê-la custodiada”, afirma Ismael Moraes, advogado.
Sobre o ataque, a Polícia Civil informou que todos os feridos e testemunhas foram ouvidos e o procedimento será encaminhado para a Polícia Federal para apuração dos fatos.
Clima de tensão
A Força Nacional está atuando na região do conflito, que ficou conhecido como “guerra do dendê”. Lideranças e membros das comunidades tradicionais vivem em constantes episódios de violência com seguranças privados da empresa, que busca controlar as áreas de plantação de dendê. O território é reivindicado pelas comunidades.
Na aldeia liderada por Miriam Tembé, I ́ixing, os casos de tiroteios já vêm ocorrendo desde dezembro de 2023. Ela havia enviado um ofício, em dezembro de 2023, ao Ministério Público Federal para denunciar e pedir providências quanto a invasões, ameaças de morte e roubos praticados contra lideranças indígenas e ao território da aldeia do Povo Tembé.
Segundo o MPF, os dados estão em processo de encaminhamento para gabinete do MPF que atua em questões relacionadas a direitos indígenas na região do nordeste paraense.
O órgão então recomendou a prorrogação do uso dos agentes federais, a partir de 3 de janeiro, quando encerraria a ação; e pediu ainda ao Governo do Pará, por meio da Secretaria de Segurança Pública (Segup), o reforço com policiais militares para controle do acirramento dos conflitos na região.
“A Força Nacional não estava fazendo nada, estava circulando parece que só para justificar diária, porque a quadrilha do Paratê Tembé anda com vários pistoleiros, invadindo territórios, atirando em crianças e adolescentes, e a Força Nacional não faz nada”, afirma o advogado Ismael Moraes.
A fragilidade nas ações dos agentes que deveriam mediar o conflito criou ainda mais clima de tensão na região, segundo indígenas. Um morador, que preferiu não ser identificado, disse que os agentes apareciam com pouco efetivo, e que não estariam atuando à altura para dar respostas ao conflito.
Procurado, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) ainda não informou se o Governo do Pará solicitou prorrogação da atuação da Força Nacional na área. Já a Segup disse que “a recomendação do MPF é para que a Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) auxilie os trabalhos das forças federais e esta atuação dá-se por iniciativa do Executivo Federal, apenas com a anuência do Estado, como foi desde o início dessa atuação, sendo que desde já o Governo do Pará sempre foi favorável a tal decisão”.
O MPF disse nesta sexta-feira (5/01) que ainda não recebeu respostas sobre os ofícios enviados nos últimos dias.
Sobre a prisão de Miriam Tembé, a Segup disse que “a Polícia Civil, dentro de suas atribuições, cumpriu mandado de prisão emitido regularmente pelo judiciário e as forças de segurança do Estado realizam seu papel de garantia da ordem pública e espera que os demais órgãos envolvidos também adotem as medidas pertinentes, dentre eles o Ministério Público Federal (MPF), tendo em vista tratar-se de conflito envolvendo comunidades indígenas e quilombolas”.
A Segup disse também que “as forças de segurança monitoram a situação na área”.
Também envolvida na mediação do conflito, a Secretaria de Estado dos Povos Indígenas (SEPI), chefiada por uma liderança Tembé, Puyr Tembé, informou que “acompanha a situação e trabalha na mediação, em conjunto com órgãos estaduais e federais”. A pasta afirmou que “busca uma nova reunião com as lideranças envolvidas para auxiliar na resolução da situação”.
Entenda o caso
Antes de ser presa, Miriam Tembém denunciou junto à Divisão de Homicídios, em Belém, que a comunidade indígena dela havia sido alvo de invasão, ameaça e tiros na madrugada da última sexta-feira (30), por volta das 2h, em Tomé-Açú.
Segundo o relato, um grupo de três indígenas seria o responsável pelo atentado, acompanhado de pistoleiros. No local estavam crianças e mulheres. Ninguém ficou ferido no dia 30.
Segundo a Cacica, um grupo indígena ligado a Paratê Tembé estaria envolvido com o crime a fim de tomar à força as terras para o cultivo e venda de frutos de dendê. A defesa dele foi procurada, mas não havia dado retorno até a última atualização.
O crime no dia 30 de dezembro ocorreu na comunidade I’ixingem, localizada no KM 1 do Ramal Vila Socorro. No local, estariam dormindo crianças e mulheres que correram para a mata quando o trio de indígenas chegou e começou a disparar balas de fogo em direção ao barraco central da aldeia, de acordo com a liderança.
A cacica revelou que só conseguiu se livrar do tiroteio pois quinze minutos antes do atentado havia saído do local. Ela afirmou que a comunidade corre perigo e os próprios familiares seguem sendo ameaçados de morte.
“Por 15 minutos após a minha vida não foi ceifada, eles querem a qualquer custo me matar”, declarou Miriam Tembé.
Após o ataque, a comunidade identificou que uma das balas atingiu o banco do passageiro do veículo do irmão da cacica, espaço onde ela sempre costuma andar quando se desloca para o centro da cidade.
Em relato para a polícia, Miriam destacou que essa não foi a primeira vez que foi atacada. No dia 14 de dezembro, outro atentado também teria sido orquestrado pelo mesmo trio de indígenas, e que na ocasião, o próprio carro da cacica teria sido depredado, por isso estaria utilizando o veículo do irmão.
Segundo Miriam, o grupo de invasores faz uso de forte armamento, incluindo armas com laser e tem um quantitativo de aproximadamente 100 pessoas, entre indígenas da comunidade Tembé, aliados a pistoleiros, atravessadores e compradores do fruto de dendê, além de outras pessoas não indígenas.
A Cacica divulgou um vídeo em frente à Divisão de Homicídios em Belém, depois de registrar o boletim de ocorrência. Ela detalhou que já oficializou as denúncias a todos os órgãos competentes e afirma que “em nenhum momento houve medidas de proteção para a comunidade afetada”.
“Se eu tiver a minha vida ceifada, o meu sangue estará nas mãos de todos os que eu denunciei e em nenhum momento tomaram providências. A vida do meu povo, da minha aldeia corre sério risco!”, afirmou Miriam Tembé.
No dia do atentado a Polícia Militar, Força Nacional e Polícia Federal teriam ido até o local para saber detalhes do que estava ocorrendo, porém segundo a vítima nada fizeram.
Desde outubro de 2023 a Força Nacional vem atuando na região para contenção de conflitos por terras. O prazo de permanência vencia na quarta-feira (3), mas segundo o Ministério Público Federal, a tensão ainda é muito alta na região.
O que os órgãos dizem
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup) informou que “atua, dentro das suas atribuições, na região e que após o registro do caso, tendo em vista tratar-se de conflito entre dois grupos indígenas e no interior de seus territórios, foi comunicado ao MPF e PF”.
A Polícia Federal, Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) também foram procurados. Apenas a Funai havia respondido até esta sexta-feira.
O órgão indigenista disse que “acompanha os conflitos na região, por meio das unidades descentralizadas localizadas em Belém e Marabá, em conjunto com as demais instituições, como Ministério Público Federal (MPF), Polícia Federal, Ministério Público Estadual e Secretaria Estadual dos Povos Indígenas, entre outras entidades” e que “tal conflito envolve confrontos entre indígenas e quilombolas e entre diferentes grupos de indígenas”.
“Ambas as coordenações da Funai mencionadas já participaram de audiências na sede do MPF com o objetivo de mediação, porém não houve sucesso. Além disso, uma reunião de mediação chegou a ser agendada para ocorrer na região do conflito, em que estava prevista a participação de diversas instituições, a qual foi cancelada por motivos de segurança. Ressaltamos ainda que, devido à complexidade e riscos existentes na região, os servidores da Funai possuem dificuldades de realizar diligencias in loco, desse modo, têm buscado atuar junto às demais instituições envolvidas, incluindo o Ministério dos Povos Indígenas (MPI)”, afirma.
Fonte: G1 Pará.