A Associação Nacional dos Produtores de Cacau (ANPC) planeja fechar trechos da BR-101, em Ilhéus (BA), em protesto contra a chegada de mais um carregamento no porto da cidade de amêndoas de cacau importadas da Costa do Marfim para processamento nas três multinacionais que atuam no Brasil (Olam Agrícola, Barry Callebaut e Cargill Agrícola).
O dia do protesto depende da chegada do navio, mas segundo Vanuza Lima Barroso, presidente da associação, o movimento deve reunir cerca de 300 pessoas depois do Carnaval.
Produtora em Itabuna e Ubaitaba, Vanuza explica que os cacauicultores querem a revogação da Instrução Normativa (IN) 125/21, do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), que retirou a exigência fitossanitária para a importação das amêndoas do país africano, ignorando os riscos de trazer para o Brasil pragas e doenças quarentenárias (não existentes por aqui) como a Striga spp e a Phytoptora Megakaria, que poderiam contaminar a produção de cacau e de outras culturas como soja, milho, arroz, feijão, cana e sorgo.
“Na normativa anterior do ministério, de 2020, essas doenças existiam na Costa do Marfim. De um ano para o outro, desapareceram por um passe de mágica”, diz Vanuza, acrescentando que a instrução anterior exigia um tratamento com brometo de metila para o embarque das amêndoas africanas.
Segundo ela, a norma atende aos interesses das indústrias moageiras e, para editá-la, o Mapa ignorou vários protocolos e fez a vistoria de análise de risco de pragas em apenas uma cooperativa e um grande produtor e considerou que o país africano que produz o cacau mais barato do mundo tem mais de 1 milhão de produtores, a maioria pequenos, estava livre dessas doenças.
Projeto na Câmara
No ano passado, o deputado Zé Neto (PT-BA) propôs um Decreto de Projeto Legislativo (PDL) pedindo a revogação da instrução normativa. O texto tramita na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara.
O relator do projeto, deputado Domingos Savio (PL-MG), diz que o ministério não ouviu os produtores antes de editar a norma, o que contraria a Constituição.
Vanuza afirma que houve mudança também na inspeção federal na chegada das cargas, que passou a ser feita primeiro por uma empresa privada antes de ir para os laboratórios federais.
“Já passamos pela vassoura-de-bruxa que arrasou nossas plantações e temos agora a ameaça da monolíase presente no Acre e Amazonas. Se mais essa doença da striga chegar aqui, será o caos social porque nem os Estados Unidos conseguiram erradicá-la”, diz, contando que sua família teve que se mudar da Bahia depois que a crise da vassoura acabou com as lavouras de cacau e a economia da região em que moravam.
O pai dela era comerciante em Itabuna, cidade para onde ela voltou adulta e capitalizada há três anos para investir no plantio de cacau. Em 500 hectares, Vanusa colhe cerca de 5.000 arrobas, das quais pelo menos 95% vão para moagem nas três indústrias de Ilhéus.
Outro lado
Anna Paula Losi, presidente-executiva da Associação Nacional das Indústrias Processadoras de Cacau (AIPC), disse à Globo Rural que a IN 251/21 foi editada após uma solicitação da Costa do Marfim para rever a análise de risco de pragas porque eles não concordavam com a instrução anterior.
“É uma praxe prevista na legislação nacional e internacional, e nos acordos sobre controle fitossanitário. Nenhum país pode exigir de outro medidas que impeçam o comércio, pois medidas assim são consideradas ilegais pelos organismos internacionais. Após uma visita criteriosa do Ministério da Agricultura às áreas de produção de cacau na Costa do Marfim, cooperativas, portos e reuniões com o governo foi elaborado um relatório que identificou quais pragas deveriam ser regulamentadas, e quais não havia necessidade de regulamentação.”
Segundo a executiva, o risco dessas pragas atingirem a lavoura brasileira por meio da importação é baixíssimo porque as amêndoas importadas passam por um criterioso processo no país de origem, são fermentadas e secas, passam por fumigação e a sacaria para importação é nova.
Além disso, ao chegar no Brasil, elas passam por um processo de classificação e análise laboratorial e só vão para os armazéns das fábricas depois da liberação pelo Vigiagro (Vigilância Agropecuária Internacional).
“E, desde que foi implementada a IN 125, chegaram cargas de cacau da Costa do Marfim e não foi identificado nenhum risco.”
Ministério
No ano passado, em resposta à carta da associação dos produtores pedindo a revogação da IN 125, o Mapa usou os mesmos argumentos das indústrias e disse que “a importação de amêndoa de cacau fermentada e seca da Costa do Marfim ou de qualquer outra origem não expõe o setor produtor de cacau a risco fitossanitário inaceitável, por ser um produto semiprocessado com baixo risco de ser via de ingresso de pragas quarentenárias no país, principalmente daquelas pragas relacionadas à lavoura de cacau”.
Procurado nesta semana, o ministério, agora sob a direção do ex-senador Carlos Fávaro, ainda não respondeu se é favorável à revogação da IN ou se vai debater o assunto.
Precisa importar?
A presidente da associação dos produtores, entidade fundada em julho de 2022, alega ainda que a importação de amêndoas da África é desnecessária e representa um desincentivo à lavoura nacional, que já seria capaz de produzir todo o cacau necessário para o processamento industrial.
Usando números da Produção Agrícola do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Vanuza diz que o Brasil produziu 302 mil toneladas em 2021, mas a indústria importou outras 46 mil toneladas para um processamento anual de 220 mil toneladas.
“A gente gera renda, dá emprego porque tudo na lavoura de cacau é manual, preserva as matas com o sistema de produção cabruca, faz a economia girar e não tem nenhum apoio. O papo da indústria de que precisa importar porque nossa produção é menor não nos convence. As contas não fecham.”
Vanusa diz que, como a indústria exporta derivados de cacau, teria interesse em manter as importações devido ao drawback, regime aduaneiro especial que permite a suspensão ou eliminação de tributos incidentes na aquisição de insumos empregados na industrialização de produtos exportados.
A executiva da AIPC responde que os dados do IBGE referem-se à previsão de safra e não há checagem do que efetivamente foi produzido. Já os dados da associação das indústrias são de recebimento de amêndoas, números auditáveis, já que nenhuma amêndoa de cacau pode dar entrada nas fábricas sem nota fiscal.
Segundo ela, os números do IBGE já foram questionados na Câmara Setorial do Cacau, que criou um grupo de trabalho para discutir alternativas e rever os dados para que eles possam representar a realidade.
“Se realmente o Brasil produzisse 302 mil toneladas, a indústria não importaria amêndoas de cacau e muito provavelmente a importação de derivados também cairia drasticamente. Em 2021, recebemos 197.654 mil toneladas de cacau e é bastante improvável que mais de 100 mil toneladas tenham ficado estocadas com os produtores.”
Volume cai
No ano passado, as indústrias importaram apenas 11 mil toneladas, o menor volume em cinco anos, para uma moagem de 226.015 toneladas. O crescimento da moagem e a redução nas importações, segundo Losi, acompanham o aumento da produção nacional.
Sobre o drawback, a executiva diz que esse instrumento de política pública do governo federal busca incentivar a industrialização e agregação de valor para exportação.
“A indústria moageira nacional e também diversos outros setores, utilizam o drawback para se tornarem competitivos no mercado internacional, reforçando o compromisso de gerar valor para a indústria nacional.”
Segundo ela, esse regime permite que o Brasil seja um hub de derivados de cacau para atender diversos países, entre eles Argentina, Chile e Estados Unidos e que, nos últimos cinco anos, o Brasil exportou mais de 250 mil toneladas de derivados de cacau.
Sobre investimentos na produção nacional, Anna Paula afirma que as indústrias não abrem seus números, mas um levantamento da Iniciativa CocoaAction, que reúne os diversos elos da cadeia do cacau, apontou que o volume investido pelas empresas parceiras em projetos e assistência técnica para elevar a produtividade do cacau nacional entre 2017-2021 foi de R$ 132,5 milhões.
Para o período de 2022-2026, a previsão é investir R$ 448 milhões.
Por Eliane Silva — Redação Globo Rural