O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública contra a União, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e a Fundação Nacional do Índio (Funai) pelo descumprimento das obrigações previstas no licenciamento ambiental das obras de pavimentação da BR-163, que liga Cuiabá, no Mato Grosso, a Santarém, no Pará, e é por onde passa grande parte da produção de soja brasileira para exportação.
Uma série de medidas foram planejadas antes de começar o asfaltamento, para evitar danos graves aos povos indígenas, previstos pelos estudos de impacto ambiental. As obrigações estavam sendo cumpridas pela Funai e pelo Instituto Kabu (do povo Kayapó), apesar dos atrasos sistemáticos do Dnit em repassar os valores exigidos, mas os planos de trabalho deveriam ter sido renovados até julho deste ano e até agora não foram. Com isso, os indígenas afetados, dos povos Panará e Kayapó Mekragnotire, temem a paralisação dos programas de mitigação.
Para piorar, com a conclusão do asfaltamento da rodovia, o Dnit enviou documento à Funai tentando se eximir da responsabilidade com os impactos e alegando que, como a estrada vai ser concedida à iniciativa privada, o futuro concessionário é que deverá assumir as obrigações ambientais. Para o MPF, é impossível justificar a transferência da responsabilidade socioambiental a um concessionário privado que ainda não existe, “quando, em realidade, a suposta iminência de concessão deveria tornar a obrigação de definir o programa mitigatório ainda mais relevante, na medida em que caso haja transferência de responsabilidade a um novo ente, é fundamental que este tenha a dimensão do passivo socioambiental do empreendimento, antes da contratação”.
Para o MPF “a inexistência de um plano mitigatório macula o licenciamento com vício gravíssimo, pois trata-se da prova da viabilidade do empreendimento”. A insegurança quanto à mitigação dos danos provocados pela BR-163 é uma das principais reivindicações que levaram os Kayapó Mekragnotire, das terras Baú e Mekragnoti, a ocuparem a rodovia na semana passada em um protesto que teve momentos de tensão por causa da dificuldade do governo em abrir negociações com os indígenas.
Estrada para soja, mas não para castanha
São essas pendências que o MPF busca resolver com a ação ajuizada segunda-feira, 24, na Justiça Federal de Altamira (PA), município onde ficam as terras dos povos Panará e Kayapó Mekragnotire, afetados diretamente pelas obras da BR-163. Para se ter uma ideia das dívidas do Dnit, responsável pelos impactos do asfaltamento, depois de dez anos do início das obras ainda não foram concluídos os ramais e estradas que deveriam conectar as aldeias desses povos à rodovia. Os ramais foram considerados essenciais no licenciamento para garantir o escoamento de produtos florestais como a castanha, que asseguram a sobrevivência dos moradores das terras indígenas e protegem contra o assédio de exploradores ilegais, como garimpeiros e madeireiros.
Na ação judicial, o MPF pede que o Dnit seja condenado a indenizar por danos materiais e morais os povos atingidos pelos atrasos e descumprimentos das obrigações do Plano Básico Ambiental (PBA), o que poderá ser determinado através de perícia judicial. Além disso, pede-se decisão liminar – urgente – para impedir a concessão da licença de operação da rodovia enquanto não forem renovados o PBA e os programas de apoio para todas as comunidades indígenas afetadas. Pelos pedidos do MPF, a Justiça pode dar prazo de 10 dias para que o DNIT apresente os planos de trabalho, já analisados e aprovados, para continuidade dos programas de mitigação nas terras indígenas Panará, Mekragnotire e Baú; obrigar a Ibama a aplicar sanções contra o Dnit pelo atraso nas compensações; proibir que as ações de mitigação sejam descontinuadas; e incluir os estudos de impactos sobre os indígenas no processo de concessão da rodovia. (Veja todos os pedidos abaixo)
“Os brancos estão acabando com tudo para plantar soja, criar gado e explorar garimpo”
A importância de cumprir os planos de mitigação para proteger as terras indígenas dos impactos provocados pelo asfaltamento da BR-163 se verifica na realidade socioambiental da região cortada pela estrada. Como previsto pelos estudos de impacto ambiental, aumentou a pressão fundiária, houve expansão do desmatamento, multiplicação dos focos de queimada e proliferação do garimpo ilegal no entorno das terras indígenas afetadas.
“No período decorrido entre a Licença de Instalação dos primeiros trechos contemplados, em janeiro de 2008, e os dias atuais, todos os impactos previstos no EIA/RIMA concretizaram-se em maior ou menor grau. Ainda que a implementação do PBA BR-163 Componente Indígena tenha sido fundamental para a atenuação desses impactos sobre os Kayapó, a complexidade do cenário estabelecido a partir do início da pavimentação da rodovia deu uma nova dimensão ao desafio enfrentado e trouxe um nível de incerteza à dinâmica do relacionamento dos indígenas com a sociedade envolvente que torna fundamental que se reforcem as ações que obtiveram inegáveis acertos e se avaliem as principais lacunas observadas na tentativa de mitigar os impactos que ainda se farão notar sobre as populações indígenas da região”, diz documento do Instituto Kabu, citado pelo MPF na ação judicial.
A análise das imagens de satélite demonstra as transformações acarretadas após a pavimentação da rodovia, e o cerco que se formou ao redor das Terras Indígenas. “A magnitude dessa pressão sobre o entorno dos territórios Kayapó Mekragnoti e Panará foi constatada pelo Ministério Público Federal, em vistoria realizada com o Ibama, em 2017. Sendo que a sequência de imagens que consta do Relatório de Missão do MPF demonstra que: o limite do desmatamento é o limite das Terras Indígenas, sendo marcante o contraste entre a nuvem de fumaça das áreas de floresta derrubada e o tapete verde que cobre as terras do povo Kayapó Mekragnotire”, relata a ação judicial.
Quando tiveram conhecimento da manifestação do Dnit, enviada à Funai, em que o órgão tenta se eximir das responsabilidades pelos impactos socioambientais dizendo, entre outras coisas, que já houve mitigação dos impactos do asfaltamento, as lideranças Kayapó passaram vários dias debatendo o assunto, revoltados com a posição oficial. Suas considerações foram enviadas ao MPF e estão citadas na ação judicial. Eles deram o exemplo do rio Pixaxá, que os brancos chamam de rio Curuaés, que divide a Terra Indígena Menkragnoti com as fazendas de gado, plantação de soja e áreas de mineração.
“Do outro lado do rio, os brancos estão acabando com tudo para plantar soja, criar gado e explorar garimpo. Eles estão acabando com a mata que protege o rio e nós já estamos sendo prejudicados, porque o peixe está diminuindo, a água está ficando mais quente, os venenos dos pastos e das plantações de soja estão caindo na água. Tudo isso por causa da BR-163, porque a rodovia está servindo para eles ganharem mais dinheiro com o boi e a soja. O garimpo está sujando a água, poluindo cada vez mais, e o Ibama não faz nada. Todos os caciques estão falando que o desmatamento e queimadas aumentaram muito na beira das nossas áreas.”
A discussão das lideranças Kayapó prosseguiu falando das queimadas: “qualquer dia o fogo vai destruir a floresta das terras indígenas. Eles falaram que os brancos colocam fogo quando está quente e seco, tem muitas folhas secas dentro da mata, esse fogo de agora em diante vai destruir as terras indígenas. Na divisa seca com os fazendeiros não tem cerca para controlar a invasão, o fogo vai comer as terras indígenas e o branco vai tomando conta da nossa área. Isso que as lideranças Kayapó estão falando para o Dnit: que o impacto só aumenta e vai aumentar cada vez mais. Nós estamos sendo ameaçados, discriminados, tem branco que ameaça nós dizendo que vai tomar nossa terra. Por isso que as lideranças não concordam com palavra do Dnit”.
O tempo em que todo mundo morreu
Rasgada na floresta amazônica em pleno território indígena durante a ditadura militar, a BR-163 provocou a morte de centenas de indígenas entre as décadas de 1970 e 1980. Os Panará, povo na época chamado de Índios Gigantes pela imprensa nacional, tiveram a população reduzida de cerca de 600 pessoas para menos de 80, por doenças e conflitos provocados pelo contato forçado pela ditadura. Como uma medida extrema para assegurar a sobrevivência do grupo, eles foram retirados de suas terras ancestrais no rio Peixoto Azevedo e levados para o Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso, onde ficaram exilados por cerca de 20 anos. O contato forçado ficou conhecido entre eles como um tempo de na tuk pirê há, em que todo mundo morreu.
Na década de 1990, quiseram ver o que tinha acontecido com seu território e encontraram a devastação provocada pela abertura da estrada. “O vale do Peixoto de Azevedo mostrava aspecto desolador. Os garimpos e as fazendas haviam derrubado a mata, poluído e assoreado os rios, especialmente o braço norte. Muitas calhas tinham virado lamaçais. Vastos trechos do paradisíaco Peixoto de Azevedo eram lodo puro. Os índios constataram com estupor os efeitos do desmatamento desordenado, da pecuária e de vinte anos de garimpagem. Ali mesmo, manifestaram o desejo de se encontrar imediatamente com as autoridades responsáveis pela construção da estrada que induziu à ocupação da região. Ficaram indignados e exigiram satisfação”, registra o estudo de impacto ambiental feito para as obras de pavimentação. Anos depois, o Estado brasileiro foi condenado ao pagamento de indenização pelas ações decorrentes do contato e da remoção compulsória dos Panará.
Para os Kayapó Mekragnotire, o contato com os brancos, forçado pelas obras de construção da rodovia, também foi trágico. “Abandonados pelo SPI (Serviço de Proteção ao Índio) e assolados por epidemias de gripe e sarampo, foram reduzidos, em 1967, a 70% da população original. (…) Os habitantes da TI Baú, após sua transferência do rio Curuá para o rio Baú, sofreram redução de 80% em sua população, decorrente de epidemias de gripe”.
O MPF não descarta uma repetição das desgraças da época da ditadura com o descumprimento das obrigações socioambientais das obras de pavimentação. “A área a ser atravessada pela rodovia está, em grande parte, fora do controle do governo brasileiro, especialmente no que diz respeito ao meio ambiente e à posse da terra. O principal impacto de pavimentar a BR 163 neste momento seria o de acelerar a destruição da floresta ao longo de seu traçado e em vários pontos fisicamente distantes da rodovia, mas sob sua influência. Mais importante que o desmatamento à margem da estrada é a extensão do alcance de sua área de influência: a pavimentação leva à rápida expansão de estradas ‘endógenas’, e a exploração madeireira e de desmatamento para distâncias substancialmente maiores”, diz o pesquisador Arnaldo Carneiro Filho em trecho do livro Amazônia Revelada: os descaminhos ao longo da BR-163, citado na ação judicial.
Fonte: Ascom/MPF