A extração de ipê nas reservas do estado do Pará está sendo fraudada para legalizar madeira clandestina. Pesquisadores brasileiros afirmam que as madeireiras estariam superestimando o volume de madeira cuja extração é permitida, de forma a legalizar madeira retirada ilegalmente de áreas de proteção permanente, como a beira dos rios.
O trabalho foi publicado em um artigo na revista científica “Science Advances”. A partir dele espera-se identificar e coibir as empresas e os técnicos de manejo florestal envolvidos nas fraudes.
Os madeireiros estão superestimando os volumes de madeira que alegam existir nas áreas que desejam explorar, especialmente de ipê, que é a madeira mais cara e a mais procurada”, afirma o engenheiro agrônomo Pedro Brancalion, pesquisador na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ) da Universidade de São Paulo, em Piracicaba.
Seu colega na Esalq, o também engenheiro agrônomo Edson Vidal, vai além: “Alguns poucos engenheiros agrônomos responsáveis pela vistoria das áreas de mata a ser explorada inflam o volume das espécies mais valiosas. Fazem isso para poder incluir nos carregamentos legais de madeira troncos de ipê extraídos ilegalmente de reservas indígenas, de áreas de conservação ou nas reservas obrigatórias de mata nativa que cada fazenda é obrigada a manter”. Brancalion e Vidal pesquisam o manejo florestal de espécies nativas tropicais.
Para entender como e por que os planos de manejo estão sendo fraudados, é preciso conhecer o processo legal de exploração de madeira na Amazônia. Cada fazenda na região é obrigada a manter uma reserva florestal que corresponde a 80% da área total da propriedade, conhecida como reserva legal.
A extração controlada de madeira nas áreas de reserva legal é permitida, desde que siga certos critérios. Deve-se contratar um engenheiro agrônomo para fazer o plano de manejo e acompanhar o trabalho das madeireiras. Esse profissional deve contar todas as árvores de cada espécie que existem na área que se quer explorar. Ao fazê-lo, ele coloca plaquinhas de identificação nos troncos.
Existe um volume máximo de cada espécie comercial, como ipê, jatobá ou cumaru, que pode ser derrubada em cada área. As árvores devem ter um tronco com diâmetro superior a 60 centímetros, ou seja, são árvores maiores e mais antigas. Mas nem todas elas podem vir abaixo. “No caso do ipê, é preciso manter um mínimo de três árvores por hectare, para garantir o repovoamento da área,” diz Brancalion.
É a partir da contagem das árvores que o agrônomo tem condições de estimar a quantidade em metros cúbicos de madeira de cada espécie que pode ser extraída naquele local. Essas quantidades fazem parte do plano de manejo, que é submetido à aprovação de fiscais da Secretaria de Meio Ambiente do Pará.
Uma vez aprovado o plano de manejo, é emitida uma licença (ou Autorização de Exploração Florestal). Só aí podem ser derrubadas, mas apenas aquelas indicadas no plano de manejo e dentro do volume máximo previsto. O agrônomo responsável deve acompanhar o manejo e colocar placas de identificação, especificando a espécie de cada tora retirada, assim como especificando o toco ao qual pertence cada madeira removida.
“Nos casos que parecem estar sendo fraudados, os madeireiros alegam ter extraído, por exemplo, aquelas dez toras de ipê constantes no plano de manejo aprovado (mas que, na verdade, não existiam na região de exploração)”, diz Vidal.
“Mas não é isso que de fato fazem. Os madeireiros derrubam dez árvores, mas talvez metade delas seja ipê, cujos troncos são identificados e carregados nos caminhões. As outras cinco árvores abatidas pertencem, na verdade, a espécies de menor valor comercial, e mesmo espécies não-comerciais.”
“Os madeireiros ganham duas vezes. Eles cortam e arrastam as árvores de menor valor no lugar de ipês nas áreas legalizadas, e cortam e arrastam ipês de áreas proibidas,” diz o biólogo Saulo de Souza, da Esalq, que também participou da pesquisa. Quanto aos troncos das espécies não-comerciais, são simplesmente abandonados na mata para apodrecer.
Uma vez que as árvores pouco comerciais são retiradas, o agrônomo responsável pela fraude coloca uma placa em seus tocos indicando que se trata de um ipê. “Mas a outra placa, aquela que deveria ser afixada no tronco de madeira de menor valor correspondente, é na realidade afixado num tronco de ipê, tronco este que foi abatido de forma ilegal, como por exemplo na margem dos rios, onde a extração é proibida,” explica Vidal. “Com a placa indicando que aquele tronco de ipê foi extraído legalmente, a madeira ilegal pode ser transportada normalmente pelas rodovias.”
Um outro estratagema é afirmar no plano de manejo que as árvores são maiores do que realmente são. Segundo Vidal, o volume fictício de madeira legal resultante passa a ser preenchido com madeira ilegal. “É basicamente assim que os madeireiros fazem para esquentar a madeira retirada de forma clandestina.”
Como foi que o estudo chegou a tais conclusões? Os pesquisadores resolveram confrontar os dados referentes ao número de espécies e ao volume de madeira das licenças de extração aprovadas, com uma estimativa científica do volume de madeira, por espécie, que deveria existir originalmente nas áreas que foram manejadas. Tal estimativa pode ser feita a partir de imagens de satélite da floresta, registradas pelo governo federal nos anos 1970.
Os pesquisadores investigaram 427 licenças de manejo constantes no sistema da Secretaria de Meio Ambiente, e que foram aprovadas pelos fiscais do governo. Agindo desse modo, obteve-se o levantamento da quantidade de árvores de cada espécie e do volume de madeira indicado em cada licença.
O passo seguinte foi estimar o volume de madeira existente em cada hectare de floresta registrado nas fotos de satélite. As licenças mencionavam a existência de 80 espécies diferentes. Os pesquisadores estudaram as onze espécies mais abundantes. Chegou-se assim numa estimativa científica do volume de madeira de cada espécie que existia nos locais explorados.
Ao confrontar os dados das licenças com as estimativas feitas dos registros de satélite, os pesquisadores verificaram que muitos números não batiam. “Havia licenças alegando um volume de ipê até quatro vezes superior ao volume por nós estimado,” afirma Brancalion.
Por fim, em outubro de 2017, acompanhado de membros da organização não-governamental Greenpeace e da Força Nacional, Souza realizou uma vistoria em algumas áreas onde a extração ilegal de ipê parecia ter sido elevada. “Havia nos locais dezenas de “árvores imaginárias”, comenta Souza.
A partir da identificação dos planos de manejo em teoria fraudados, foi possível descobrir os nomes dos agrônomos responsáveis por cada um deles. Na região, há 97 profissionais que trabalham para as madeireiras elaborando planos de manejo.
“As fraudes parecem estar relacionadas a uma minoria entre os técnicos”, diz Brancalion. De acordo com os pesquisadores, cerca de 15% deles são os responsáveis por todos os planos supostamente fraudados.
A BBC News Brasil procurou fazer contato com a área de fiscalização da Secretária de Meio Ambiente do Pará e com representantes da Associação Indústria Exportadoras de Madeiras do Pará (Aimex) – as empresas madeireiras Amazônia Florestal, sediada em Belém, Advantage Florestal, de Ananindeua (PA), e Ipex Comércio de Madeiras, de Marituba (PA) –, mas não obteve retorno.
“Estou muito preocupado com o futuro do ipê”, diz o pesquisador Edson Vidal. “Ele pode seguir o caminho do mogno, que foi extraído até o desaparecimento no Pará.” O mogno era a madeira mais nobre até os anos 1990. Quando suas reservas se exauriram, as madeireiras partiram para a segunda espécie de maior valor comercial, o ipê.
O problema com o ipê talvez venha a ser ainda mais sério do que com o mogno, árvore de crescimento mais rápido do que o ipê. De acordo com Vidal, “o ipê cresce muito lentamente. Dados de que dispomos indicam que seriam necessários cem anos de preservação intocada para repovoar uma área devastada com apenas 10% dos indivíduos da população original de ipês.”